terça-feira, 22 de julho de 2008

Saudades de outrora


Contar-vos-ei sobre ela, porque fora que sempre cuidou de mim, agora sou eu quem lhe retribuo o favor, lembro-me muito bem quando ainda era diferente,quando ela escondida da minha, da nossa patroa, ou dona, se abraçava a mim, sentia minha pele de algodão, minha fibras finas, doces, suaves que cheiravam, exalavam um cheiro limpo, limpído, uma lavanda única, nunca soubera o que era exatamente, fora criada desde de criança pela patroa, seus pais haviam há muito morrido, lavava, passava, cozinhava, dava um carinho, um verdadeiro, não um comprado ou alugado, aos filhos que nunca foram dela e que nunca conseguira parir, pois os que a vida tentou lhe dar morreram antes de nascer, por fome, por sede,agonizaram em seu ventre, ela podia sentí-los chorando, se agarrando à vida,à ela, o desespero a tomava, grunia fino, abraçada à mim, segurava sua barriga como se tentasse acalentar seus filhos que ela já sabia que não mais viviam, me envolvia em seu corpo, quisera dar meu calor a eles, depois vinha a dor, a dor da certeza, que era de um vermelho vivo, um vermelho que era marcado pelo sangue que escorria pelas pernas, por ter de se despedir de quem já amava, de alguém que nunca conhecera e já tanto sabia; morreram provocando-lhe uma dor que se repetira por diversas vezes, mas de certa maneira lhe fora única... sempre sofreria pelos filhos que nunca pudera ter,mesmo sabendo que nenhum futuro poderia lhes ofertar, mas amor, carinho... por isso amo-a tanto, por isso a envolvo nas noites mais frias, sinto suas lágrimas quentes ao lembrar de outrora, as enxugo, mesmo eu não sendo mais tão jovem, mesmo não tendo o perfume único de antes sou o único que ele ama e somente quem pode amá-la.

A noite caira por completo, não pôde perceber, o que é o tempo para quem não existe? O que é o tempo pra quem o destino escolhera para sofrer? Uma dor eterna de ser a excluída dos excluídos, claro que não é a única, aqui há tantos como ela. Para mim o tempo tem sentido, eu desbotei, perdi a minha cor, hoje tenho o cheiro da velhice, não tenho a beleza da juventude,para mim o tempo passa, me marca, mas para tantos excluídos que aqui vivem o tempo marca a solidão, o tempo não volta, todos daqui sabem, muitos nem passado têm para chorar, para recordar, o que seria uma vida sem nostalgia? E perspectiva de futuro, aqui na selva de pedra, aqui na rua dos excluídos, aqui nas calçadas frias, nos viadutos, a loucura é uma benção, não ter responsabilidade pelos próprios atos, não corar pela vergonha pelo que se é, não corar por perde-se, não corar por estar mais para um objeto não desejado que a um ser humano. Não ter de pedir desculpa por pedir, não se pede pra viver, se pede pra se continuar vivendo.
Não há lugar pra fraqueza, não há lugar pra aqueles que pedem licensa pra ser, aqui somente os fortes sobrevivem, talvez por isso sejam tão invisíveis, porque não existem humanos tão fortes.
Lembro de quando a vi pela primeira vez, sua pela negra, lisa, que reluzia, que tanto contrastava com a minha brancura, sentia sua mão decorrendo sobre mim, um prazer quase humano. Lembro de escutar os gritos infantes, dela largar-me para acalentar as crianças que não eram suas, lembro dos momentos tão só nossos, quando em casas sozinhos sobre a cama, com nossos corpos entrelaçados, meu calor transpassando sua pele,eu sentia sua negritudi, sentia seu prazer ao aconchegar à mim, o calor que se desprendia do meu corpo à alegrar, acho que era amor, mas nunca poderei saber o que é.O que seria o amor?
Mal sabia que sofreria de saudades por aquelas tardes, mal sabia que se tornaria um nada, sem dúvida é mais forte que antes, mas não poderia imaginar onde chegaria? Poderia ter idéia de um destino tão cruel?

Um comentário:

Kika disse...

Sabe, eu não consigo enxergar a história de excluídos que você disse que faria. Não sei, quando se fala em excluído remete a uma idéia de pena, mas esse texto não faz com que o leitor sinta realmente pena. Acho que o que se sente quando lê é uma sensibilidade provocada pelas descrições desse narrador de primeira pessoa. Eu acho que a história gira em torno de uma solidão, saudade.
O conto está bom, mas... tipo, como você usa vírgula!